segunda-feira, 26 de julho de 2010

O filho eterno




“(...) – e ele quase se entrega a autopiedade, desenhando um quadro em que ele, bom menino, ao finalmente normalizar sua vida (uma mulher, um salário, estudos regulares, um futuro, livros, enfim), recebe de Deus um filho errado, não para salvá-lo, mas para mantê-lo escravo, que é o seu lugar. Mais um dos testes medonhos do Velho Testamento, em que um deus sádico extrai de suas vítimas até a última gota de alma, para que ele definitivamente não seja nada, apenas uma sombra da sombra de um poder maior. Por quê? Por nada, porque voltaremos ao pó. Seria bom se fosse simples assim, ele suspira: uma explicação, qualquer uma. O problema é justamente o contrário: não há explicação alguma. Você está aqui por uma soma errática de acasos e escolhas, Deus não é minimamente uma variável a considerar, nada se dirige necessariamente a coisa alguma, você vive soterrado pelo instante presente, e a presença do Tempo – essa voracidade absurda – é irredimível, como queira o poeta. Vire-se. É a sua vez de jogar. Há um silêncio completo à sua volta.”

O filho eterno, Cristovão Tezza. (p. 93)


(Conheci esse autor numa palestra da FLIPORTO 2009, quer dizer, conheci sua escrita literária, pois apenas conhecia seu trabalho acadêmico como uma boa estudante de Letras que sou hahaha. Gostei muito sobre o tema abordado na palestra, sobre “autoficção”, uma nova nomenclatura para livros em que a vida do autor é a temática. Uma espécie de autobiografia, porém ás vezes contada em terceira pessoa em que o autor tem a liberdade de acrescentar fatos que não aconteceram ou fatos contados pela metade. O livro de Tezza é narrado em terceira pessoa, embora cause a impressão de estar em primeira pessoa, o que trata-se, na verdade, de uma mistura ou confusão criada propositalmente pelo autor. A livro toma formas a partir do nascimento do seu primeiro filho diagnosticado com síndrome de down, o filho é o motivo do livro, o impulso que faz com o autor resgate momentos importantes da sua vida ao acompanhar o crescimento da criança. O que mais me impressionou no livro é a coragem de dizer o que se passou na sua cabeça ao ver que não se tratava de uma criança ‘normal’ e a racionalidade com que rever os fatos e os reescreve à medida em que sua memória permite. Uma permissão que lembra a famosa catarse explicada por Aristóteles na sua poética e nos leva também à mimese se formos pensar bem nessa nomenclatura que resgata o conceito aristotélico. Escrever é recriar a realidade, sem fidelidades e também, um processo pessoal de quem escreve.)

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